AS DOLOROSAS CONSEQUÊNCIAS DE UM SISTEMA “AMORAL”.

 

Por: Diogo Santos, Co-Fundador do Instituto Apolo em Defesa da Vida e da Saúde – IADV

 

Este texto é ilustrado pela foto de Micael Abner de Luna Fontes, falecido em março deste ano quando alcançava apenas 2 (dois) meses de existência. As causas da morte da criança são imputadas por seus familiares à operadora do plano de saúde contratada, bem como ao estabelecimento hospitalar procurado para a realização de procedimentos de urgência e emergência na criança.

 

Isto porque, realizando exame pediátrico de rotina, foi diagnosticada no bebê a presença de grave infecção bacteriana no trato urinário, razão pela qual foi imediatamente encaminhado para a entidade hospitalar em que deveriam ser promovidos os tratamentos indicados pelo médico assistente, necessitando de procedimento emergencial e, em função do curto desenvolvimento de seu organismo, a posterior internação hospitalar pelo prazo de 10 (dez) dias.

 

Entretanto, apesar do delicado quadro clínico que já apresentava a criança, a instituição hospitalar, almejando abster-se dos custos necessários à realização dos procedimentos terapêuticos, promoveu consulta para autorização prévia da operadora de plano de saúde, que recusou suportar o ônus financeiro do tratamento. Assim, pouco tempo após chegar ao hospital com Micael, esta entidade exigiu de seus familiares que consignassem, através de cheque-caução, um valor de R$ 1.100,00 (mil e cem reais), condicionando o atendimento às referidas garantias financeiras.

 

Quedando-se surpresos com as circunstâncias, os responsáveis pela criança não dispunham, no momento da exigência, dos valores fixados pela entidade hospitalar, razão pela qual se viram obrigados a buscar outro estabelecimento capaz de realizar as atividades necessárias à restauração da saúde da criança, frustrando-se após visitar diversas unidades localizadas nas cidades vizinhas.

 

Imersos em sentimentos de apreensão e angústia, os pais do bebê reuniram os valores necessários e retornaram ao hospital que havia estabelecido a abusiva exigência, que ainda submeteu o cheque apresentado à verificação de fundos junto à instituição financeira responsável, razão pela qual a criança apenas recebeu o tratamento e as doses dos medicamentos indicados 27 (vinte e sete) horas após o primeiro pedido apresentado.

 

Em função do alongado lapso temporal necessário ao início do tratamento, a gravidade da patologia foi substancialmente acentuada, em face da disseminação das bactérias (antes no trato urinário) no fluxo sanguíneo, evoluindo a um quadro clínico de “septicemia” (infecção bacteriana generalizada) e, assim, desencadeando uma resposta orgânica através da liberação de toxinas responsáveis pela dilatação arterial, resultando, finalmente, na diminuição abrupta da pressão sanguínea (“choque séptico”).

 

Referidas circunstâncias ocasionaram 4 (quatro) paradas cardíacas no bebê, momento em que foi determinado pelos profissionais que o acompanhavam que o mesmo fosse encaminhado a uma Unidade de Terapia Intensiva mais próxima (localizada em outra cidade), fazendo-se necessário uma UTI móvel para realizar o transporte do paciente.

 

Porém, protagonizando novamente condutas extremamente desfavoráveis à criança, a operadora de plano de saúde não autorizou a realização do transporte, negando-se a custear os valores necessários para tanto, ensejando a permanência do paciente na mesma entidade em que já se encontrava.

 

Cinco horas após a negativa do último pedido, Micael Abner de Luna Fontes, filho de Joseane Lourenço Luna e Josimar Fontes, sofreu a quinta parada cardíaca e não resistiu.

 

Revoltados, os pais da criança falecida expuseram o caso em diversos veículos midiáticos, além de realizar protestos em desfavor das empresas envolvidas no falho atendimento que ocasionou a morte do bebê, criando, inclusive, um site para divulgar todas as atividades relacionadas à luta contra os planos de saúde (https://casomicaelabner.webnode.com/), nova bandeira erigida a partir dos tristes acontecimentos acima narrados.

 

Apesar dos terríveis momentos vivenciadas pelos pais de Micael, a operadora e o hospital, entoando idêntico discurso, exararam nota (quase inacreditável) em que “lamentaram a morte de Micael, e disseram que todas as coberturas legais e contratuais foram disponibilizadas”.

 

Destaca-se, inicialmente, as flagrantes inverdades imersas nestas afirmações, ainda porque, esta mesma operadora de plano de saúde já havia discutido judicialmente, em diversas oportunidades, circunstâncias estritamente semelhantes à vivenciada pela criança[1], sendo reconhecido pelo Poder Judiciário que a justificativa utilizada pela entidade (segundo a qual Micael ainda estava em “período de carência contratual”) não possuía qualquer legitimidade legal, em função das normas constitucionais e infraconstitucionais do ordenamento jurídico (em especial o Código de Defesa de Consumidor).

 

A exigência de cheque-caução para a realização de procedimentos, por sua vez, foi abordada em determinação da Agência Nacional de Saúde – ANS, cujo teor proibia esta prática por quaisquer prestadoras de serviços hospitalares. Atualmente, esta mesma prática configura uma conduta criminosa (art. 135-A do Código Penal).

 

Percebe-se, assim, que ao contrário do que foi afirmado, “as coberturas legais e contratuais”, em verdade, jamais vieram a ser efetivamente disponibilizadas, ainda que as empresas tivessem plena consciência de que deveriam fazê-lo.

 

O aspecto mais alarmante da “nota” de esclarecimento, porém, ultrapassa o âmbito jurídico da questão, revelando-se no comportamento absurdo e inescrupuloso das pessoas que compõem os cargos de gestão destas empresas, arvorando-se em premissas falsas para se esquivarem de uma imagem negativa ou mesmo de qualquer sentimento de culpa ou remoroso.

 

Depara-se, às claras, com a comprovação e exemplificação da “amoralidade” característica do sistema econômico capitalista, para o qual o que importa é ganhar dinheiro, gerar lucro, e todos os outros aspectos são meramente periféricos. A ausência de elementos ou padrões de moralidade, neste específico ramo empresarial (mercado da saúde suplementar), impulsiona essas pessoas (empresários “da saúde”[2]) por caminhos em que a própria vida humana é desconsiderada; pessoas são mortas, perdem membros ou movimentos, perdem os sentidos (visão, audição...) e a qualidade de vida, para que, com isso, as margens de lucro sejam dilatadas.

 

 É evidente a incorreção jurídica da conduta adotada pelas empresas envolvidas neste evento, vivenciados não apenas por Micael ou Durvanier Paiva (caso que ganhou as mídias de Brasília/DF), mas por milhares de pessoas que sistematicamente se veem submetidas à voracidade mercadológica que as afastam dos tratamentos que necessitam, tendo sua dignidade, seu amor próprio ou mesmo suas vidas, trocados por valores tão irrisórios.

 

Reiteradamente, o Poder Judiciário, arvorando-se em princípios jurídicos de cunho estritamente moral e ético, penaliza estas entidades por condutas contrárias ao direito, impondo multas pelos danos morais e materiais vivenciados pelos usuários. Porém, apenas 1% (um por cento) de todos os pacientes que se submetem a situações injustas desta natureza se utiliza das ferramentas judiciais, percentual ínfimo que subtrai a eficácia prática das medidas adotadas.

 

Nota-se, desta maneira, que a modificação desta estrutura voraz não está necessariamente condicionada à “estatização” da saúde suplementar do país, mas em sua “moralização” efetiva (alcançada, de forma tênue, pelo Poder Judiciário), inserindo preceitos de comportamentos que sejam compatíveis com os valores preconizados na Constituição, sobrelevando-se a dignidade e a vida em desfavor de cláusulas contratuais nitidamente abusivas, impedindo que a ganância e o lucro tomem o lugar da humanidade que necessariamente deveria estar presente neste setor.

 

De acordo com estudos realizados por profissionais da clínica urológica do Hospital das Clínicas da USP, “a infecção do trato urinário responde rapidamente ao tratamento com agentes antimicrobianos adequados”, e, como asseveraram estudos realizados pelo Departamento de Pediatria da Universidade de Botucatu/SP, “com o advento de antibióticos e modernos meios de diagnóstico, a mortalidade por essa doença [infecção urinária] atualmente se aproxima de zero”.

 

O desperdício da possibilidade de salvar a vida de Micaelsuprimida em 8% (oito por cento) a cada hora que os antibióticos não eram ministrados no bebê[3], não parece merecer uma indiferença semelhante às cotidianas notícias de televisão, mas convoca nossa inteligência para que a estrutura cancerígena instalada por estas empresas seja devidamente observada, fazendo com que, em todas as oportunidades e por todas as pessoas envolvidas com os pacientes, possam ser utilizadas as ferramentas disponíveis e capazes de reverter esta torpe lógica lucrativa, evitando que outras vidas sejam friamente abandonadas em favor de acréscimos bancários alheios ao sofrimento que provocam.



[1] Apenas para exemplificar, vide processo n° 0003082-94.2009.8.17.0480 em trâmite perante o TJPE.

[2] Termo tão irreal que chega a ser irônico.

[3] Dados relativos ao choque séptico informados pela Associação Médica Brasileira.
Disponível em: https://www.amb.org.br/teste/index.php?acao=mostra_noticia&id=6446